ERAM OS CURITIBANOS ASTRONAUTAS?
Marcos H. Camargo
Depois de anos de infrutíferas pesquisas, sir Wilbor – destemido antropólogo inblês, nos moldes de Indiana Jones - desistiu de procurar o Reino das Amazonas no Peru, por incompleta possibilidade técnica de seguir as pistas dadas pelos indígenas da região. Quando sua coleção de miçangas e camisas do Flamengo acabou, o indigitado cientista teve de retornar a Londres. Mas, ainda em Belém do Pará, tomou conhecimento de que ao sul daquele imenso e desconhecido país tropical chamado Brasil, existia - ou melhor - diziam que existia uma comunidade exótica que vivia sob a neblina de um imenso vale atrás da Serra do Mar. Nenhum antropólogo jamais havia retornado de lá.
Denominada pelos indígenas da região como Coré-Etuba, ou simplesmente Curytiba, para os caboclos portugueses que supõem-se tenham alcançado a região séculos atrás, a comunidade permanecia submersa em espessas brumas para a ciência ocidental. Curioso e afoito, sir Wilbor desviou-se de sua rota original e partiu para São Paulo, cidade onde possivelmente encontraria transporte rumo à região misteriosa. Lá chegando deparou-se com um imenso congestionamento. Depois de oito dias engarrafado entre milhões de carros, conseguiu atingir o precário aeroporto de Congonhas e embarcou num pequeno avião de uma companhia local. O aeroplano decolou com um rombo na fuselagem, que era usado para saltos de paraquedas.
Depois de horas, o incrédulo piloto anunciou ao antropólogo que provavelmente estavam sobrevoando a região denominada de Curytiba. Sir Wilbor dirigiu-se ao rombo na fuselagem e munido de todo seu equipamento, despediu-se dos demais passageiros, saltando para o desconhecido em um paraquedas especial que comportava também o peso de sua bagagem. A primeira visão estarrecedora foi a densa neblina se aproximando rapidamente e que cobria de fato toda a região. Em poucos segundos o antropólogo inglês penetrou-a, desaparecendo da vista do piloto, que murmurando para consigo mesmo, lamentou a sorte do cientista.
De repente, alguns segundos mais adiante, sir Wilbor vislumbrou abaixo a silhueta de um terreno semelhante a uma plantação. Sem grandes problemas, chegou a solo, caindo próximo a uma vaca holandesa que o olhou displicentemente. Logo, sir Wilbor verificou que a plantação era de batatas. Segundo lendas, imigrantes polacos haviam chegado à região no século XIX e a principal cultura de subsistência seria o tubérculo.
Pensamentos fantasmagóricos passaram como um raio pela privilegiada cabeça do pesquisador. Seriam os curytibanos adoradores de vacas como os hindus ou simplesmente antropófagos? Mesmo tomado de pavor com a paisagem algo ‘transsilvânica’, sir Wilbor recolheu seu material e equipamentos, pondo-se a caminhar por uma trilha que surgia à sua frente na grande campina. Ao longe, divisou o que parecia ser uma casa rústica, semelhante àquelas dos imigrantes ingleses do século XVII, da Nova Inglaterra. De repente algumas crianças surgiram na porta da casa simples e logo denunciaram a presença do estranho.
_No, please, no. I’m friend - “amigo”.
_ Será o Boi-Tatá? - perguntou uma mulher gorda e muito branca, ao marido que já empunhava ostensivamente uma enxada.
_É brranco demais. Não deve serr.
Aproximando-se da família, sir Wilbor tentou se comunicar em várias línguas centro-européias, pois havia sabido de lendas antigas que ali habitavam imigrantes eslavos e ucraínos.
_Ele fala como meu avô.
_Cruz Credo! - exclamou a mulher. - Será fantasma de vovô?
Sir Wilbor, no entanto, percebeu que a família camponesa se comunicava com um dialeto do português, talvez proveniente de influências judaicas medievais de Amsterdã, cujos ancestrais vieram colonizar o Brasil, a partir do século XVI. Conseguiu deles a indicação de um bom caminho rumo à cidade denominada Curytiba. Dessa forma, mais tranqüilo, prosseguiu em seu caminho. A neblina, muito mais densa do que o fog londrino de sua saudosa memória, obrigou o cientista a caminhar lentamente rumo à comunidade curytibana. Chegando ao que parecia ser os arrabaldes da cidade, deparou-se com estranhas construções de origem provavelmente eslava, de cores intensas e desconcertantes, com lambris recortados em madeira, decorando as bordas dos telhados. Parecendo algo indiferentes, os habitantes mal se davam conta da presença do antropólogo. Era a confirmação da lendária frieza dos curytibanos, segundo o que narraram raros visitantes. Comunicando-se por meio de seu precário português, conseguiu se fazer entender com facilidade, uma vez que os habitantes também mantinham sotaques arrastados, ora assemelhando-se ao alemão, ora ao italiano, ora ao polaco. Tomou o endereço de um albergue e lá chegando se fez anunciar ao proprietário como estudioso de culturas exóticas.
_E o que o senhor pensa encontrrar aqui? Nós não ser estranha. Aqui todos se conhecem.
_Venho estudar os costumes de sua gente, senhor.
_Em Curytiba nossa costume é trabalhar e não perguntar aos outros o que estão fazendo. Pode ocupar o quarto 12. E vou avisando, não toleramos uivos em noites de lua cheia. Dizem que o “vampiro de Curytiba” é uma lenda, mas ninguém explica os roubos de sangue do hospital local.
_Bem, senhor, devo afirmar-lhe que uivar não é minha predileção.
Dia seguinte, após descansar da viagem penosa, sir Wilbor sai logo cedo do albergue para perambular pela cidade, tendo à mão um bloco de notas para registrar a cultura original da cidade. Depois de horas andando pelas ruas, sem destino certo, observou que a estrutura social curytibana estava até aqui, formada de dois estratos perfeitamente distintos, nos quais se incluíam quase toda a população. Previamente denominando-os de homo araukarensis e homo cellularis, a perspicácia do inglês parecia dirigir-se à solução do enigma curytibano. Com mais alguns dias de observação meticulosa, o cientista parecia ter revelado à ciência mundial um dos primeiros mistérios que envolviam aquela região do planeta. Os membros da sociedade definidos como homo araukarensis, homens e mulheres, formavam a vasta maioria dos extratos básicos da pirâmide social, responsáveis por todos os serviços e trabalhos mais simples e que não exigiam grandes complexidades de raciocínio. Suas origens remontavam, pelo perfil lombrosiano acentuado, aos primeiros imigrantes centro-europeus que, talvez pela prodigalidade da terra, não precisaram evoluir além da mentalidade do século XIX trazida pelos seus avós e bisavós. Eram em sua maioria descendentes de poloneses, italianos, alemães, ucranianos, dentre outros. Já os homo cellularis, visivelmente mais desenvoltos, provavelmente deviam suas habilidades especiais a espanhóis e portugueses que primeiro chegaram à região, provenientes de reduções jesuíticas destruídas por bandeirantes paulistas nos séculos XVII e XVIII. Estando aqui há mais tempo, os homo cellularis tiveram a oportunidade de progredir mais rapidamente do que os homo araukarensis.
Suas características principais eram, no caso dos araukarensis, a manutenção de uma lógica algo estranha que em síntese se define pelo trabalho silencioso acima de tudo e pela auto-xenofobia, isto é, um novo conceito em antropologia cunhado por sir Wilbor que, na verdade, se parece com uma aversão total a qualquer curytibano que alcance destaque ou sucesso em qualquer atividade. Os araukarensis preferem valorizar figuras estrangeiras e de outras comunidades, a apoiar qualquer outro araukarensis ou cellularis autóctone que se destaque em sua comunidade, com especial aversão pelos talentos artísticos locais. Por sua vez, os cellularis, mais afeitos ao mando político da comunidade, destacam-se por comportamentos mais simples de serem identificados. São absolutamente fascinados por novidades, como revela seu costume - de onde sir Wilbor vai tirar o nome que os define - de manter colado ao ouvido direito ou esquerdo, um telefone celular constantemente ligado. Este costume vem acompanhado de rituais de comunicação lingüísticos basicamente definidos pela fala alta em locais públicos, gritos indefiníveis cuja origem parece ser a péssima ligação telefônica com seus semelhantes. Dizem algumas histórias, provavelmente exageradas, que os cellularis chegam a gritar conversas desconexas em plena seção de cinema, teatro ou em restaurantes. Mas talvez isso não passe de lendas de viajantes que procuram exagerar suas aventuras por essas plagas.
Anatomicamente, os araukarensis e cellularis são praticamente idênticos. Mas não em relação a outros habitantes do planeta. Eles têm particularidades que fariam um anatomista vibrar de satisfação pelas diferenças orgânicas que aqui se desenvolveram. Diziam lendas, que araukarensis e cellularis, por meio da evolução, desistiram da reprodução sexuada, talvez pelo desinteresse que machos e fêmeas locais sempre revelaram pelo ato sexual. Provavelmente, segundo teorias antigas, o clima permanentemente ruim tenha desestimulado esse tipo de reprodução, o que também explicaria a frieza polar em suas relações pessoais. No entanto, argutamente, sir Wilbor vem também desmentir mais essa visão distorcida em relação aos curytibanos. Como um bom inglês, sir Wilbor conhece bem a dificuldade do intercurso sexual entre machos e fêmeas da espécie homo sapiens, que habita a maior parte do hemisfério norte. Portanto, não foi difícil engendrar uma observação meticulosa do ato sexual entre araukarensis e cellularis machos e fêmeas. Escondendo-se cuidadosamente numa câmara escura, dentro de uma casa habitada por cellularis, sir Wilbor pôde observar por meio de uma filmadora com luz infravermelha, descobrindo que os curytibanos praticam sexo, não apenas para reprodução, como também até por prazer. O ato, entre uma fêmea e um macho cellularis, no entanto, dura aproximadamente oito segundos. A fêmea se coloca na cama, completamente nua, fazendo ar de enfadada, enquanto o macho se debruça sobre ela sem, contudo, deixar de falar ao telefone preso em sua orelha; copulam por oito ou dez segundos, terminando o ato com o visível orgasmo do macho. Há hipóteses segundo as quais a fêmea curytibana desconheça o orgasmo e, talvez por isso, nunca encorajam os machos ao ato sexual. Mais uma vez, isso deveria ser objeto de estudo e não de teorias estapafúrdias de viajantes apressados.
Retornando às ruas, sir Wilbor passou a analisar as crenças religiosas locais, mostrando-se absolutamente extasiado com as manifestações místicas da população autóctone. A primeira e mais visível manifestação religiosa reunia em quase todos os pontos da cidade, vários curytibanos empilhados em minúsculos templos de forma cilíndrica, tubos de vidro fumê, aonde desenvolviam pequenos rituais ou cultos “ligeirinhos”. Em sua maioria tais cultos tinham por destino as bênçãos de uma antiga deusa denominada “Hidra de Lerna”, proveniente da mitologia grega que, segundo os nativos, em suas sete cabeças se planeja a cidade futura. Isto é, seus adeptos cultuam a Hidra de Lerna na esperança de resolver seus problemas urbanos.
Um outro deus, normalmente invocado por seus adeptos quando pretendem realizar festanças, quermesses e outras atividades festivas, tem origens possivelmente gregas também. Trata-se de uma versão local de Baco denominada de “Hi-Fi El Greca”. Geralmente representado por imagens como um feliz burgomestre, montado numa carrocinha enfeitada de flores e puxada por burrinhos pitorescos. Há, na cidade, muitos monumentos em sua homenagem, dos quais se destacam o Farol do Saber. Mas nem só de deuses alegres e benfazejos se compõem a mitologia curytibana. Semelhante à deusa hindu Cali, especialmente vinculada à morte trágica e à destruição, a denominação local desse terrível ser mitológico lembra também a desgraça: Réquiom. Talvez por alguma junção de memórias provenientes da Europa central, Réquiom é assim chamado porque atrás de seus passos vem invariavelmente apenas a desgraça. Geralmente representado por um homenzarrão corpulento, com olhos claros de lince e uma vasta cabeleira gris que se avoluma logo acima das sobrancelhas, Réquiom é conhecido por ser muito irascível. Dizem algumas pitonisas do Templo da Boca Maldita, que esse deus se prepara para suas tarefas ao acordar pela manhã, tomando um litro de suco de limão e batendo sua poderosa cabeça contra os muros de seu Palácio, a fim de exaltar seu terrível ânimo. Os curytibanos lhe rendem homenagem quando tempestades ou catástrofes de quaisquer ordens se avizinham da cidade. Temido inclusive pelos outros deuses, Réquiom freqüentemente assombra a comunidade curytibana com sérias ameaças de governá-la novamente com mão de ferro, como fizera há tempos atrás, segundo as lendas.
Sir Wilbor, incansável em sua dedicação à ciência, prosseguiu em sua marcha. Chegando a uma casa, numa das vilas de Curytiba, pretendeu visitar aquele que os nativos chamam de a Mary Shelley local, por ter escrito diversas histórias a respeito de um provável “vampiro de Curytiba”. Mas, não para seu espanto, os vizinhos do venerável escritor trevisano lhe avisaram que o contador de histórias não existia. Disseram que havia suspeitas de que um tal escritor vivera ali naquela casa simples por muitos anos, mas ninguém em sã consciência poderia afirmar tê-lo visto. A imprensa do mundo todo já tentou entrevistá-lo, porém um empregado da casa disse que o escritor não falaria. Para os locais, ele não poderia mesmo falar, uma vez que não existe.
Já em sua singela cama de hotel, refazendo suas anotações e preparando-se para pegar carona em uma caravana de ovelhas que cruzaria as fronteiras da comunidade rumo a São Paulo, sir Wilbor desenvolveu uma curiosa, mas até certo ponto plausível teoria a respeito dos curytibanos. De acordo com suas diferenças anatômicas, culturais, racionais e religiosas e, tendo em vista o território hostil, úmido e nebuloso em que habitam, provavelmente ele se encontrava diante de uma descoberta assustadora: poderiam ser os curytibanos provenientes de outro planeta?
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